À volta da intolerância

Por que é que os humanos começaram a beber leite animal?

Quando um bebé nasce, o primeiro alimento a que é exposto é precisamente o leite. Aliás, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a UNICEF, um bebé deve ser alimentado pela primeira vez com leite materno logo na sua primeira hora de vida, devendo este ser o único alimento presente na sua dieta até aos 6 meses de idade. A partir de então, as recomendações ditam que outros alimentos sejam introduzidos, devendo o leite materno ser mantido tanto tempo quanto seja possível (até aos dois anos de idade ou mais).1

De facto, quando nascemos, todos nós, humanos, temos capacidade de digerir adequadamente o leite (à exceção, como explicamos aqui, de bebés que possam nascer com défice congénito de lactase, que é, contudo, uma condição rara2). Porém, a persistência da atividade de lactase, que permite a adequada digestão do leite (e seus derivados) durante a vida adulta não é algo que tenha “nascido” com a espécie humana, mas sim uma mutação genética que se desenvolveu quando o Homem começou a consumir leite animal.3 Mas quando e por que é que este consumo começou? Vejamos.

Breve história do consumo de leite animal

Nós, seres humanos, somos, de facto, o único mamífero que continua a consumir leite após o desmame. Aliás, o Homo Sapiens é a única espécie conhecida que se adaptou ao consumo de leite de outras espécies.4

Datam de há 6000 anos as primeiras evidências do consumo de produtos lácteos por seres humanos originários de África (nomeadamente, do Quénia e do Sudão), o que significa que o consumo de leite por populações adultas é anterior ao aparecimento do “gene do leite”, isto é, à sua capacidade de digerir adequadamente a lactose. Esta experiência de começar a beber leite explica-se pela riqueza nutricional deste alimento, especialmente importante em ambientes áridos e com escassez de recursos, como seria o caso daqueles países. Deste modo, o leite tornou-se num alimento não só facilmente renovável como ainda portátil (ou seja, ao contrário das espécies vegetais, os animais podiam ser deslocados para onde houvesse necessidade).3,4

Já na Europa, pensa-se que tenha sido também há cerca de 6 ou 7 mil anos que o leite animal tenha começado a ser consumido, existindo alguns povos (como os ingleses e os romanos) em que o leite não era consumido na sua forma fresca, mas sim fermentado e transformado noutros produtos, como o queijo ou o iogurte, e outros (como os povos celtas e germânicos) que se alimentavam do líquido na sua forma natural.5 Quanto às causas que o podem justificar, poderão estar entre elas – principalmente nos povos do norte da Europa – a possibilidade de o leite ser produzido em qualquer época do ano, o que não acontece com as colheitas vegetais, que são sazonais.6

Tendo em conta o papel determinante que a Europa desempenhou nos Descobrimentos, os processos de colonização explicam a difusão do consumo de leite animal para outros povos do mundo, nomeadamente povos sem histórico de produção de leite, como a Índia, a China ou o Brasil.7

Tratamento e comercialização do leite para consumo humano

Se foi no século XVI que a prática de produzir gado para fins da extração do leite se difundiu pelo mundo, foi apenas três séculos depois que Pasteur descobriu a técnica que permite o seu tratamento de forma a eliminar agentes potencialmente patogénicos e, desse modo, evitar o desenvolvimento de doenças causadas pelo consumo de leite: a pasteurização (ainda hoje utilizada). Após algumas décadas de criação desta técnica, foi no final do século, mais precisamente em 1895, que a pasteurização começou a ser utilizada para posterior comercialização do leite, técnica que se tornou mesmo obrigatória no início do século XX.8 Nessa mesma altura, ou seja, após a I Guerra Mundial, os desenvolvimentos das Ciências da Nutrição levaram à defesa dos benefícios do leite para a saúde humana9, justificando a continuidade do seu consumo ao longo do tempo.
Em Portugal, aquando da criação da primeira Roda dos Alimentos – em 1977, no âmbito de uma campanha alimentar denominada “Saber comer é saber viver” – o “leite e seus derivados” surgiam como alimentos “indispensáveis para uma alimentação saudável”. Hoje em dia, a nova Roda recomenda que 18% da nossa alimentação diária seja constituída por laticínios.10,11

Referências

  1. Breastfeeding [Internet]. World Health Organization. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/breastfeeding
  2. Savilahti E, Launiala K, Kuitunen P. Congenital lactase deficiency. A clinical study on 16 patients. Archives of Disease in Childhood [Internet]. abril de 1983 [citado 29 de janeiro de 2021];58(4):246–52. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6847226/
  3. Curry A. Humans were drinking milk before they could digest it [Internet]. Science. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://www.science.org/content/article/humans-were-drinking-milk-they-could-digest-it
  4. Bleasdale M, Richter KK, Janzen A, Brown S, Scott A, Zech J, et al. Ancient proteins provide evidence of dairy consumption in eastern Africa. Nat Commun [Internet]. 27 de janeiro de 2021 [citado 5 de abril de 2022];12(1):632. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41467-020-20682-3
  5. Milk drinking started around 7,500 years ago in central Europe [Internet]. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://phys.org/news/2009-08-years-central-europe.html
  6. Primeras preguntas [Internet]. No Lactosa: Asociación de intolerantes a la lactosa España. [citado 29 de janeiro de 2021]. Disponível em: https://lactosa.org/la-intolerancia/primeras-preguntas/
  7. Cohen M. Animal Colonialism: The Case of Milk. American Journal of International Law [Internet]. ed de 2017 [citado 5 de abril de 2022];111:267–71. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/american-journal-of-international-law/article/animal-colonialism-the-case-of-milk/85D23B7D58EE049CE3AF2788B57838BC
  8. Historical Timeline – Milk – ProCon.org [Internet]. Milk. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://milk.procon.org/historical-timeline/
  9. Valenze DM. Milk: a local and global history. New Haven: Yale University Press; 2011. 351 p.
  10. Roda dos Alimentos [Internet]. Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://www.asae.gov.pt/seguranca-alimentar/riscos-nutricionais-/roda-dos-alimentos.aspx
  11. Comercial D-G de C. Saber comer é saber viver. http://catalogo.up.pt/F?func=find-b&find_code=SYS&request=000165330 [Internet]. 1982 de 1980 [citado 5 de abril de 2022]; Disponível em: https://repositorio-tematico.up.pt/handle/10405/51431