Charles Darwin, o autor da teoria das espécies, nasceu em 1809 e viveu até 1882, ou seja, no século XIX.1 Poderão estar, neste momento, a perguntar-se qual a relevância desta referência para um artigo que procura esclarecer se a intolerância à lactose é um problema recente…
Pois bem, a verdade é que se acredita, hoje em dia, após várias evidências científicas reunidas, que já Darwin era intolerante à lactose, embora nunca tivesse percebido que os sintomas que lhe causavam desconforto e que até o impediam, em certos períodos, de prosseguir com a sua vida diária normal, eram causados pela incapacidade de digerir o açúcar natural do leite.2
De facto, numa carta escrita a um amigo, em 1863, Darwin relatava: “passei por um mau período, em que vomitei todos os dias, durante 11 dias seguidos, e, nalguns dias, após cada refeição”. Tendo consultado vários médicos e experimentado vários tratamentos, nada aliviava os sintomas de Darwin, até que, por acaso, deixou de beber leite e os sintomas melhoraram. Assim, vários aspetos levam a crer que o cientista era intolerante à lactose, nomeadamente2:
- manifestação dos sintomas que hoje se sabe serem causados pela intolerância à lactose;
- surgimento dos sintomas no período de 2 a 3 horas após as refeições, tempo necessário para que a lactose chegue ao cólon;
- utilização frequente de leite e derivados, pela sua esposa, na confeção das refeições;
- ausência de sintomas durante o período em que Darwin viveu numa região sem acesso a leite fresco;
- melhoria dos sintomas após deixar de consumir leite.
Estamos, portanto, a falar do século XIX. No entanto, a verdade é que a não-persistência de lactase, ou seja, a condição que está na origem da intolerância à lactose, seria o estado “normal” de toda a população, se, há 10 mil anos não tivesse ocorrido uma mutação genética que fez com que nós, seres humanos, conseguíssemos continuar a digerir corretamente a lactose após a infância.2 Nós explicamos!
É normal os seres humanos serem intolerantes à lactose?
Já Hipócrates, pai da medicina, que viveu na Grécia Antiga, relatou o facto de muitos sul-europeus ficarem “doentes” após consumirem leite. No entanto, só no início do século XX, ou seja, mais de 2000 anos depois, é que a ciência concluiu que essa indisposição era causada por uma intolerância ao açúcar natural do leite, isto é, à lactose.2
Na verdade, a maior parte dos seres humanos perde grande parte da sua capacidade de produzir lactase, após o período de amamentação. No entanto, esta perda é mais significativa nos povos de cuja dieta não fazem parte o leite e os seus derivados, ou seja, os laticínios.2
De facto, como explicamos neste artigo, a capacidade de digerir a lactose ao longo da vida não nasceu com a espécie humana, tendo sido uma mutação genética que se desenvolveu quando os seres humanos começaram a consumir leite animal.3
Assim, até aos séculos XV e XVI (quando os Descobrimentos permitiram que os povos da Europa introduzissem na sua dieta certos alimentos que até então só existiam nas dietas dos povos africanos e asiáticos, como o arroz, as leguminosas, os frutos exóticos, etc.), a dieta europeia era constituída maioritariamente por carne, ovos, alguma fruta, pão e laticínios. Deste modo, é precisamente na Europa que a capacidade de digerir a lactose para além da infância é maior, enquanto, por exemplo, os povos asiáticos perdem 75% da sua capacidade de digerir a lactose durante a adolescência.2
Em suma, a prevalência da intolerância à lactose é diferente em várias partes do mundo, sobretudo, devido ao histórico de consumo de laticínios de cada povo.2
Em que partes do mundo é que a intolerância à lactose é mais comum?
Estima-se que, em todo o mundo, cerca de 4 mil milhões de pessoas sejam intolerantes à lactose.2
Segundo dados de 2017 da ProCon/Encyclopaedia Britannica, existem países em que a totalidade da população é intolerante à lactose – como é o caso do Gana, do Malawi, da Coreia do Sul e do Iémen – existindo outros 18 países em que a percentagem de pessoas que não consegue digerir adequadamente a lactose é superior a 90%. De notar que nenhum desses países se localiza na Europa.4
No continente europeu, Itália é o país com a maior taxa de pessoas intolerantes à lactose (72%), enquanto em Portugal esta percentagem desce para 40%. Pelo contrário, a Dinamarca e a Irlanda são os países onde a lactose é mais facilmente digerida pela população. Assim, estas são as percentagens de população com intolerância à lactose, nos vários países da Europa4:
País | Percentagem |
Itália | 72% |
Rússia | 61% |
Ucrânia | 61% |
Grécia | 55% |
Polónia | 43% |
Portugal | 40% |
Hungria | 39% |
França | 36% |
Espanha | 29% |
Estónia | 28% |
Áustria | 22% |
Finlândia | 19% |
Chipre | 16% |
Bélgica | 15% |
Países Baixos | 12% |
Noruega | 12% |
Reino Unido | 8% |
Suécia | 7% |
Dinamarca | 4% |
Irlanda | 4% |
Referências:
- Charles Darwin [Internet]. infopedia.pt – Porto Editora. [citado 27 de julho de 2022]. Disponível em: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$charles-darwin
- Campbell AK, Waud JP, Matthews SB. The molecular basis of lactose intolerance. Sci Prog [Internet]. 2009 [citado 27 de julho de 2022];92(Pt 3-4):241–87. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/19960866/
- Curry A. Humans were drinking milk before they could digest it [Internet]. Science. [citado 5 de abril de 2022]. Disponível em: https://www.science.org/content/article/humans-were-drinking-milk-they-could-digest-it
- Lactose Intolerance by Country – Milk – ProCon.org [Internet]. Britannica ProCon.org. 2022 [citado 27 de julho de 2022]. Disponível em: https://milk.procon.org/lactose-intolerance-by-country/